RUI KNOPFLI (Inhambane-Moçambique 1932 - Lisboa-Portugal 1997)
Um caminho de areia solta conduzindo a parte nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina, eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também tinham nomes por que era costume designá-los. Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso e misterioso, habitado por deuses e duendes de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois, com valados, elevações e planuras, e mais rios entrecortando a savana, e árvores e caminhos, aldeias, vilas e cidades com homens dentro, a paisagem estendia-se a perder de vista até ao capricho de uma linha imaginária. A isso chamávamos pátria.
remota e convencional. Mas o sangue adubou a terra, estremeceu o coração das árvores e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma só e várias línguas eram faladas e a isso, por estranho que pareça, também chamávamos pátria.
De quatro paredes restaram as pedras. Com as folhas de zinco e a madeira ferida dos travejamento perfaziam uma casa. Partes de um corpo desmembrado, dispersas ao acaso, vento e silêncio as atravessam e nelas não dura a memória
que em mim, residual, subsiste. Sobre escombros deveria, talvez, chorar pátria e infância, os mortos que lhe precederam a morte, o primeiro e o derradeiro amor. Quatro paredes tombadas ao acaso e isso bastou para que, no que era só mundo, todo o mundo entrasse e o polígono demarcado, conservando embora a original configuração, fosse percorrido por um arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos e inverno. Algo lhe alterara imperceptivelmente o perfil, minado por secreta, pertinaz enfermidade.
Semelhante a qualquer outro, o lugar volvia meta e ponto de partida, conceitos que, como a linha imaginária, circunscrevem, mas de todo eludem, o essencial. Ladeado de sombras e árvores, o caminho de areia, que se dizia conduzir a parte alguma, abria para o mundo. A experiência reduz, porém, a segunda à primeira das asserções: pelo mundo se alcança parte nenhuma; se restringe ficção e paisagem ao exíguo mas essencial: legado de palavras, pátria é só a língua em que me digo.
Rui Knopfli.
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