A
amizade
A amizade é uma pitada de doçura sobre as amarguras da vida.
Stendhal
Q
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uando eu pairava pelos
despreocupados anos da adolescência tinha, entre outros labéus, a pecha da intolerância. Para mim, o ditado
popular cá se fazem, cá se pagam e
outros aforismos afins, constituíam máximas sagradas.
Com tão intransigente
temperamento fui perdendo amigos e a custo criava novas afeições.
Uma vez, lá para as bandas do
Oeste, fui com um casal amigo a uma feira típica regional. Por qualquer
comezinha discordância com um feirante, assumi uma despropositada atitude
conflitual, a ponto de brigarmos os dois. Os meus amigos não se encontravam
comigo nessa altura, não tendo assistido à altercação.
Os tabefes infligidos pelo
corpulento vendedor marcaram-me como se um ferrete incandescente me tivesse
crestado a face. Foi a humilhação máxima para o meu espezinhado orgulho.
Quando os meus amigos regressaram
apressei-me a relatar-lhes a desgraceira em que me tinha envolvido. Revoltado,
logo ali jurei que iria acionar uma acção judicial contra o sinistro feirante.
Naturalmente, pedi-lhes que testemunhassem a agressão da avantesma. Retorquiram
que não tinham presenciado a ocorrência. Repliquei que, andando eles comigo,
bastava confirmarem o despropositado ataque do feirante. Embora com ar pesaroso
(mas cheios de razão, digo eu agora) os meus amigos recusaram-se a prestar
falsos testemunhos.
Reagi indignado, manifestando o
meu profundo desagrado com aquela recusa desamistosa. E, acto contínuo, cortei
relações com eles. Perdiam-se, em minutos, anos de prezarosa amizade que
remontava já aos tempos da infância.
Passado algum tempo, recebi a
visita dum primo do meu amigo que era também das minhas relações. Inconformado
com o nosso afastamento, o Fernando, homem franco e sensato, pretendia sanear o
incidente e restabelecer a amizade interrompida entre os seus amigos.
O seu verbo assisado e generoso
elegia frequentemente a amizade como o maior atributo detido pelo género
humano. O homem não pode viver só, isolado do mundo. Precisa imperativamente de
amigos para formar a sociedade. E, não pode ser um extemporâneo episódio menos
feliz a macular essa relação. Nós não somos perfeitos. Os nossos amigos também
não. Aqui entra a compreensão e a tolerância para ultrapassar uma discórdia.
E, a propósito, contou-me uma
história de dois amigos que também pelejaram. Rezava assim:
Dois amigos, o Jamil e o Salim,
caminhavam pelo deserto. Talvez devido à fadiga, em dada altura começaram a
discutir por um motivo fútil. Jamil, então, exaltou-se e deu uma bofetada no
Salim.
Ferido na sua dignidade, mas sem
proferir palavra, Salim sentou-se e escreveu na areia:
O meu melhor amigo deu-me hoje uma bofetada.
Continuaram a viagem até que
encontraram um refrescante oásis. Exaustos, decidiram tomar banho. O lago era,
porém, demasiado fundo e o Salim não sabia nadar. Perdeu o pé e começou a
esbracejar de aflição. Jamil acorreu, de pronto, e salvou o amigo de morrer
afogado.
Salim, depois de recomposto,
sentou-se numa pedra e escreveu numa laje:
O meu melhor amigo salvou-me hoje a vida.
Jamil, observava, curioso, o
trabalho do seu amigo e perguntou-lhe:
- Quando te dei uma bofetada
escreveste uma frase na areia e, agora, que te socorri, escreveste-a numa
pedra. Porquê?
Salim, compenetrado,
respondeu-lhe:
- Quando alguém nos molesta,
devemos escrevê-lo na areia para que os ventos do perdão possam fazer
desvanecer a nossa mágoa.
Mas, quando alguém nos faz bem,
devemos gravá-lo na pedra para que nenhum vento possa dissipar essa pródiga
atitude.
Graças à generosidade do amigo
Fernando reaprendi a viver com os outros. E passei a ser mais feliz.
Claro que daí a dias já me
sentenciava perante os meus amigos do Oeste.
Carlos Brandão de Almeida
2020-04-02
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