sexta-feira, 3 de abril de 2020

A AMIZADE - texto de Carlos Brandão de Almeida


A amizade

                                               A amizade é uma pitada de doçura sobre as amarguras da vida.
                                                                                                                                                            Stendhal

Q
uando eu pairava pelos despreocupados anos da adolescência tinha, entre outros labéus,  a pecha da intolerância. Para mim, o ditado popular cá se fazem, cá se pagam e outros aforismos afins, constituíam máximas sagradas.
Com tão intransigente temperamento fui perdendo amigos e a custo criava novas afeições.
Uma vez, lá para as bandas do Oeste, fui com um casal amigo a uma feira típica regional. Por qualquer comezinha discordância com um feirante, assumi uma despropositada atitude conflitual, a ponto de brigarmos os dois. Os meus amigos não se encontravam comigo nessa altura, não tendo assistido à altercação.
Os tabefes infligidos pelo corpulento vendedor marcaram-me como se um ferrete incandescente me tivesse crestado a face. Foi a humilhação máxima para o meu espezinhado orgulho.
Quando os meus amigos regressaram apressei-me a relatar-lhes a desgraceira em que me tinha envolvido. Revoltado, logo ali jurei que iria acionar uma acção judicial contra o sinistro feirante. Naturalmente, pedi-lhes que testemunhassem a agressão da avantesma. Retorquiram que não tinham presenciado a ocorrência. Repliquei que, andando eles comigo, bastava confirmarem o despropositado ataque do feirante. Embora com ar pesaroso (mas cheios de razão, digo eu agora) os meus amigos recusaram-se a prestar falsos testemunhos.
Reagi indignado, manifestando o meu profundo desagrado com aquela recusa desamistosa. E, acto contínuo, cortei relações com eles. Perdiam-se, em minutos, anos de prezarosa amizade que remontava já aos tempos da infância.
Passado algum tempo, recebi a visita dum primo do meu amigo que era também das minhas relações. Inconformado com o nosso afastamento, o Fernando, homem franco e sensato, pretendia sanear o incidente e restabelecer a amizade interrompida entre os seus amigos.
O seu verbo assisado e generoso elegia frequentemente a amizade como o maior atributo detido pelo género humano. O homem não pode viver só, isolado do mundo. Precisa imperativamente de amigos para formar a sociedade. E, não pode ser um extemporâneo episódio menos feliz a macular essa relação. Nós não somos perfeitos. Os nossos amigos também não. Aqui entra a compreensão e a tolerância para ultrapassar uma discórdia.
E, a propósito, contou-me uma história de dois amigos que também pelejaram. Rezava assim:
Dois amigos, o Jamil e o Salim, caminhavam pelo deserto. Talvez devido à fadiga, em dada altura começaram a discutir por um motivo fútil. Jamil, então, exaltou-se e deu uma bofetada no Salim.
Ferido na sua dignidade, mas sem proferir palavra, Salim sentou-se e escreveu na areia:
O meu melhor amigo deu-me hoje uma bofetada.
Continuaram a viagem até que encontraram um refrescante oásis. Exaustos, decidiram tomar banho. O lago era, porém, demasiado fundo e o Salim não sabia nadar. Perdeu o pé e começou a esbracejar de aflição. Jamil acorreu, de pronto, e salvou o amigo de morrer afogado.
Salim, depois de recomposto, sentou-se numa pedra e escreveu numa laje:
O meu melhor amigo salvou-me hoje a vida.
Jamil, observava, curioso, o trabalho do seu amigo e perguntou-lhe:
- Quando te dei uma bofetada escreveste uma frase na areia e, agora, que te socorri, escreveste-a numa pedra. Porquê?
Salim, compenetrado, respondeu-lhe:
- Quando alguém nos molesta, devemos escrevê-lo na areia para que os ventos do perdão possam fazer desvanecer a nossa mágoa.
Mas, quando alguém nos faz bem, devemos gravá-lo na pedra para que nenhum vento possa dissipar essa pródiga atitude.
Graças à generosidade do amigo Fernando reaprendi a viver com os outros. E passei a ser mais feliz.
Claro que daí a dias já me sentenciava perante os meus amigos do Oeste.                                                                                         
Carlos Brandão de Almeida
2020-04-02

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