Os trilhos dos monges Capuchos de Sintra, foram iluminados por um luar de uma fulgência sem par. Uma lua cheia, mais próxima de nós do que o habitual, na noite de 19 para 20 de Março de 2011, dando assim início à Primavera. Este fenómeno da Lua, só se voltará a repetir daqui a 18 anos.
Algures entre o mar e a serra, fica a Peninha.
E foi esse o desafio que aceitei, percorrer 4,5 quilómetros, desde a Malveira da Serra até àquele local e regresso, naquela noite especial. Quando iniciei a subida - bastante íngreme posso dizê-lo- e com a falta de exercício a que o longo inverno me obrigou, (tudo serve de desculpa quando não se criam hábitos), senti a respiração afogueada, o coração a pular, em arritmia desconcertante, aquilo a que vulgarmente chamamos deitar os "bofes" pela boca.
Nada mais me restava que... desistir.
Desistir quer dizer voltar para trás, voltar a percorrer mais de uma centena de metros até ao local onde se encontrava o carro. Ficar ali à espera do regresso dos outros, sozinha. Porque não me pareceu que meu marido estivesse com vontade de desistir. Ficaria sozinha no carro. O convite para o desafio dizia-me que seria o encontro às 9 da noite e a caminhada terminaria às 12,30. Ficar ali 3 horas e meia, seria o meu castigo, pela falta de exercício no inverno, esquecendo-me que tinha nos últimos quinze dias um problema grave de coluna, que me tinha obrigado a ir ao médico e estava a tomar medicamentos anti-ferrugem, desculpem anti-inflamatórios!
Na subida, já perto da Serra. Eu e o meu marido, com mais 99 pessoas. Umas mais à frente, outras atrás de nós. |
Endireitei o corpo. Afinal o problema é que na subida me inclinei demasiado sobre o coração e este cansou-se da posição incómoda. Depois de lhe pedir desculpa, apelei a todas as minhas forças e continuei. Eu sou lá pessoa para desistir de um bom desafio?
Pouco tempo depois houve ordem de parar. Por uns minutinhos - muito curtos para quem estava na minha situação! Ouvi palavras maravilhosas àcêrca daquele trilho percorrido pelos Monges Capuchos de Sintra. Ouvi falar daquela noite especial em que a Lua Cheia, magnificente, deslumbrante, resplandecia sorrindo lá no alto. Não tão alto como era habitual - ela tinha-se aproximado do Planeta Terra, precisamente naquela noite.
Ouvi o Dr. João Henriques dizer: "escutando ao longe os passos perdidos dos nossos avós"... Deixei de ouvi-lo. Pensei que teria de apurar muito o ouvido, muito mais do que os caminhantes naturais de Cascais, porque os meus avós, que eu soubesse, teriam dado os seus passos lá para os lados de Viseu. Continuei a apurar o ouvido, e nem me apercebi que tinhamos andado, andado, andado. Tinhamos pisado pedras, pedrinhas, pedroços, calhaus, pedragulhos, sem termos passado por nenhuma pedreira. E as raízes das árvores, de pinheiros e cedros? Essas cruzavam-se debaixo dos nossos pés, sem eu perceber a razão porque nos dificultavam o caminho.
Comecei a escrever mentalmente um artigo sobre aquela caminhada, que saiu sem qualquer dificuldade. Estava maravilhoso. Seria o melhor de todos os meus escritos. Ah, que se eu tivesse levado um gravador! Será que, com o cansaço, ainda teria voz para falar para o gravador? Disparate. Passadas que são 24 horas, não consigo nem sequer desatar o fio da meada para começá-lo... E nem vou tentar, apenas vou batendo nas teclas para deixar aqui o testemunho desta noite mágica.
Eis que ouvi um miúdo - sim também iam crianças, talvez não menores que 7 ou 8 anos -perguntar ao papá se podia esconder-se atrás de um arbusto porque... claro, talvez ele tivesse visto uma casa de banho! Mas eu era uma senhora. Como fazer? Nem pensar! Fui imaginando a mais bonita das casas de banho, como nunca vi igual. Comecei pela que idealizei para uma vivenda estilo antigo (velha de 40 anos, mas linda!) que tive em Fisher's Hill, ali no alto, vendo-se ao fundo Bedfordview, o Eastgate, em Joanesburgo. Para condizer com o quarto que era de tectos altos, trabalhados, que tinha de área 5x7 metros, iria o lugar - agora necessário - ter mais ou menos 4,5x3,5. Do alto das escadas do quarto para esse banheiro, o que sobressaía eram as colunas em frente à grande janela, onde dois vasos brancos, tinham fetos de folhas dentadas que pareciam rendinhas de cor verde. O w.c., escondido pelo espelho enorme da bacia dupla das mãos, e nesta, de cada lado uma enorme vela de cor vermelha iluminando duas lindas orquídeas matizadas de cores indescritíveis, quase irreais.
- "Cuidado", ouvi gritar em voz alta. "Cuidado com o charco, aqui só pode passar uma pessoa de cada vez". Sobressaltei-me. Eu que me ia sentar naquele banco almofadado da casa de banho e retocar os lábios, só esperando que me passasse a indecisão... baton cor de rosa, ou cor de?...Desci à terra, ou melhor, olhei para o lugar onde deveria pôr os pés para não encharcar as sapatilhas de ténis (que de ténis só têm o nome, eu mal peguei em raqueta de ténis durante toda a vida! E a jeiteira não deu para continuar!) Fui passando encostadinha à esquerda. "Cuidado com o charco", ouvi dizer novamente. Cuidado porquê? Era um charco lindo, onde a Lua Cheia (nesta noite tinha direito a letras grandes) deslumbrante no seu diáfano manto, fazia brilhar deslumbrante a pouca água ali estagnada. As lanternas dos caminhantes ajudavam também a dar uma variante de cores indescritíveis àquela água. Parecia irradiar uma certa magia vinda daquele charco! Passar a seu lado, contemplar a minha figura na água, era um privilégio. E tinha-me sido concedido esse privilégio!
- "Vamos virar à direita, passem palavra", ouvi uma voz ao longe. Se estivessem animais selvagens a dormir por ali, teriam acordado com a ressonância das nossas vozes, que quase em uníssono repetiam.... "vamos virar à direita, à direita, à direitaaaaaa"...
Para esquecer o cansaço daqueles 45 quilómetros de caminhada, desculpem, pareceram-me 45 quilómetros mas tinham sido apenas menos de dois quilómetros percorridos, disse à minha mente que podia continuar a vaguear por bons lugares, e que, quando eu precisasse, lhe piscaria um olho e ela deveria regressar de imediato. Ouvi rir, uma voz risonha mesmo rente a mim. Que descarada que é a minha mente, sempre a troçar quando eu digo isto. E respondona, diz-me na cara: a mente anda sempre sem parar, e nunca a poderás fechar na tua mão. Isso é um poema que fizeste Celeste: "quis fechar a mente na minha mão", mas não conseguiste fechá-la, tiveste de reconhecer que não foste capaz, que... E a mente deitou-me a língua de fora, como qualquer criança trocista. Irra! Ai que se eu tivesse folego para a apanhar, não sei o que lhe faria!
Anh? Ah! Vamos parar mais uns minutinhos. A comandante do grupo, perguntou: Pedro, aí atrás está tudo bem? Desta vez não trazes ninguém às cavalitas? O quê - perguntei à minha sombra mágica - das outras vezes o homem que fechava o cortejo, que tinha por missão certificar-se de que a turma seguia sempre em frente, (porque de um lado havia despenhadeiros que matariam quem lá caísse e do outro serra quase incapaz de subir), teve de levar alguém às cavalitas? Então não fui a única pessoa que pensou em desistir! Alguém teria sentido a mesma tentação e, não sendo possível fazê-lo porque o caminho já ia longo... como me sucedeu. A minha sombra mágica aproximou-se e disse-me ao ouvido: era uma criança que, satisfeita, teimava em caminhar, mas o Pedro quis dar-lhe uma boleia. Fica sabendo que o Pedro é um desmancha prazeres!
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E divagando mais um pouco, cheguei ao fim. Ao fim do passeio até à serra. Havia ainda o caminho de regresso. Para baixo todos os santos ajudam, não é de preocupar. Mas... para baixo as pedras escorregavam e presenciei pelos menos uma queda numa pessoa bem mais jovem do que eu. Não vou dizer "gostei", bem feita, eu também caí quando subia. Não não vou dizer isso, eu não sou menina travêssa, mas pensei: não sucede só a quem nasceu primeiro!
A vista do alto da Serra, no lugar da Peninha, não é possível ser descrita. Magnificente, deslumbrante, resplandecente - não encontro adjectivos para qualificar - com aquele luar que marcou o início da Primavera. Via-se a Praia do Guincho, o mar, as luzes de Cascais, a iluminação da ponte do Tejo e dos lugares perto da sua margem sul. Pensei nas palavras que uma das guias (perdoe-me não retive o nome) tinha pronunciado quase ao princípio da caminhada: esta Lua é abençoada. Eu tinha-lhe pedido algumas bençãos para mim, família e amigos e para todos os caminhantes. Pensei na Lua, planeta pisado por Neil Armstrong em 20-07-1969, que está a 384 mil quilómetros da terra e tem um raio de 1.700 quilómetros que é praticamente um quarto (1/4) do raio da terra, naquela noite mais próxima da terra uns milhares de quilómetros, que um menino pequenito teria perguntado: Mamã, se usarmos um escadote bem alto poderemos chegar à Lua? Mas não há escadotes assim tão altos, filho. E o menino pulou, pulou, pulou, mas não conseguiu chegar-lhe.
Ela, essa Lua especial voltará a aproximar-se da terra daqui a dezoito (18) anos! Longos 18 anos. E pensei naqueles a quem convidei e disseram que ficaria para outra ocasião. Que trouxas, digo eu. Como se vão roer de inveja! afirmou o Dr. João Henriques. Mas que se aplicam aqui, sem mais nem menos.
Chegados ao topo, fomos sentando-nos, provavelmente todos tacteando o chão, não fosse suceder o que me sucedeu: ervas silvestres ia picando as minhas mãos doridas da queda. Queda...não, daquele afagar o chão, que me tinha deixado apenas um leve pó nas calças pretas, ao nível dos joelhos. E todos sentadinhos lá no alto, perto das ruínas, a encher o peito de fôlego para o regresso, ouvindo as informações do Dr. João Henriques relativas àquele lugar, foi outro dos encantos da noite. Pena não ter espaço nem as saber reproduzir. Que ali havia um cemitério onde, séculos antes, eram enterradas crianças até aos 7 anos, almas sem pecado, dissera ele. Agora é que lamentava não ter levado o gravador. Se o meu confrade autorizasse, eu deixaria aqui para vosso consolo, todos os conhecimentos que me foram transmitidos, mas que, ao apreciar a paisagem no regresso, fui esquecendo.
Porque não sei descrever melhor, vou usar palavras do confrade Dr. João Henriques sobre a organização : O SerCascais desvenda mais um segredo da nossa terra, guardado no sopro do vento, à luz de uma lua brutal e escutando ao longe os passos perdidos dos nossos avós.
Não deixem de fazer esta caminhada, acompanhados por quem sabe desvendar os mistérios que os caminhos dos Monges Capuchos de Sintra encerram. O tal segredo guardado no sopro do vento. Vale a pena. É uma experiência única. O mais velho dos caminhantes - eu adivinhei - tem 78 anos e está feliz por o ter efectuado. No meu mural do facebook as fotos elucidativas, com o meu casaco enfolado pelo vento acariciante da noite de Lua Cheia.
Celeste Cortez
Parabens Celeste! adorei o texto, ainda mais que sou uma amante de Sintra e vou algumas vezes andar perto do Convento dos Capuchos que costumo visitar sempre que tenho visitas.
ResponderEliminarDeve de ter sido uma experiencia muito enriquecedora!
bjs
Guida Freitas