quarta-feira, 10 de março de 2021

CONTO - UM AMOR CHAMADO FAMÍLIA, de António Cortez Silvestre

 

        “UM AMOR CHAMADO FAMÍLIA”

O meu nome é ANTÓNIO CORTEZ SILVESTRE. Nasci a 11-03-1933, casado desde 13-05-1959. Tenho 3 filhas, 3 genros, 3 netas, 3 netos e neste ano de 2021 temos 3 bisnetas e 2 bisnetos naturalmente ainda bem pequenos.  

O amor familiar é tão importante para a minha felicidade como a água a alimentação e o sono, são necessários ao corpo. As vidas daqueles que amo, por escolha deles ou pelo destino, seguem caminhos longe de mim e de minha esposa. Estão espalhados por todos os continentes: Uns vivem na Austrália, outros na África do Sul, na América, em Angola, na Alemanha e apenas uma filha e um genro vivendo em Cascais, a uns 600 metros do apartamento onde vivo com minha mulher. A saudade faz doer, mas a nossa união é tão afetuosa que estão todos dentro do meu coração e também, com a ajuda das novas tecnologias, a saudade vai-se atenuando.  

Como sempre acontece na vida de todo o ser humano, tive alegrias e tristezas de que me recordo. Todos dizem “a minha vida daria um romance” e eu tenho a certeza que a minha também. Mas é impossível descrevê-la num romance, tantas são as histórias que seria difícil saber por onde começar ou acabar. Uma história sim, essa posso escolher e contá-la. Uma que me marcou, precisamente pela demonstração de amor filial, pelo amor fraternal e pelo amor que devemos ao nosso próximo.

A minha irmã Orísia (faleceu aos 17 anos), eu e a minha irmã Celeste, que viveu até aos 87 anos e meio. 

A II Grande Guerra fez sofrer a minha geração,

Mas os atos de amor de meus pais, irmãs e irmãos,

O carinho e a solidariedade para com outras pessoas

Foram uma lição de amor que marcou o meu coração.

   

Eu e a minha sobrinha Orísia, na rua, em frente a minha casa.   

                                                                        
Foi no tempo da Grande Guerra de 1939 a 1945. Tinha eu 6 anos. Até ali vivíamos com muita abundância, eu considerava-me rico. Tinha bicicleta, tinha um cão que até jogava à bola comigo e os meus amigos, no largo da estação, perto da minha casa. Embora fosse bola de trapos, o cão, no seu lugar de guarda-redes, quando se fartava da brincadeira,  pegava na bola e ia direito a minha casa situada a 100 metros. Escondia a bola e ninguém conseguia faze-lo voltar à brincadeira.

Numa manhã que não poderei esquecer, parda e triste, igual ao papel pardo que uma das empregadas estava a colar nas janelas, cabisbaixo percorri vagarosamente toda a casa, e em todas as divisões, até na cozinha enorme e nas casas de banho, todas as janelas estavam tapadas com o papel da mesma cor. Fui perguntar a minha mãe a razão. Embora a resposta tenha sido dada para a minha idade, depressa compreendi que era por causa dos bombardeamentos. Toda a gente falava da guerra e dos bombardeamentos na rua, ou cochichava com as vizinhas, esquecendo-se que os pequenos também têm ouvidos.

Com a guerra veio a fome. Deixou de haver no mercado o pouco que as pessoas compravam como bens de primeira necessidade e não tinham posses para comprar no mercado negro: O café, o açúcar e arroz. Como tínhamos  pensão e  mercearia, a lei conferíamos o direito de receber senhas para levantar essas mercadorias de primeira necessidade e, naquela altura, também possuíamos dinheiro para as comprar na candonga se fosse necessário. Muitas pessoas que atravessavam dificuldades recorriam a minha mãe, que sempre lhes oferecia, é esta a palavra porque era uma dádiva, um pouco de café, cem ou duzentos gramas de açúcar e arroz, consoante o número dos seus familiares, privilegiando os que tinham filhos pequenos ou pessoas de idade a seu encargo. 

O coração de minha mãe nunca deixou de acudir aos mais necessitados, apesar da vida familiar ter mudado para pior com a morte prematura de meu pai, antes de eu completar sete (7) anos de idade.   

Os meus pais. 

                                

O meu pai era o meu ídolo. Naquela altura em que a educação era rígida, não me lembro de alguma vez me ter ralhado. Lembro-me com um    misto de orgulho e agradecimento, de o ver entrar manhã cedo, antes de sair para alguma viagem ou ir para a quinta dirigir o pessoal, entrar no meu quarto, sabendo que eu tinha o sono leve, ir levar-me um copo de leite morno e duas bolachas. Esperava que eu o bebesse e comesse as bolachinhas, para me aconchegar a roupa da cama. Depois de eu ouvir a sua voz tão doce e cheia de amor: “vá, dorme meu menino”, eu adormecia novamente.

           O que é bom não dura sempre, diz o provérbio popular, no meu caso foi, infelizmente, verdade. Meu pai tinha um cavalo e foi à cavalariça na falta do empregado. Tinha uma pequena ferida no pescoço que infetou e morreu de tétano,  em 26 de Janeiro de 1940.

Devia ser proibido morrer o pai ou a mãe de qualquer criança.  

Como me disseram que ele tinha ido fazer uma viagem, e como comerciante viajava muitas vezes, continuei com a esperança do seu regresso. Passado alguns dias, estava à porta de casa,  olho para o cimo da rua e juraria naquele momento que era o meu pai que vinha a descê-la. Só nessa altura assumi a sua morte. Às minhas lágrimas juntaram-se as das minhas irmãs, dos meus irmãos e da minha mãe.

O meu cão não precisou, nem nesse dia  nem nos dias mais próximos, de acabar o jogo de  futebol dos miúdos que se juntavam no largo da estação e trazer a bola para casa. Num gesto de amor para com o seu pequeno dono, lambeu  as  minhas lágrimas mas, nem ele nem ninguém conseguiu apagar a tristeza do meu coração, que ainda hoje recorda com saudade o meu belo e bondoso pai.    

ANTÓNIO CORTEZ SILVESTRE, março 2021.

 

5 comentários:

  1. Muitos parabens Papa, beijinhos e felicidades.
    Gostei de ver as fotos antigas :)

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  2. Gostei de ler. Felicidades e muitos parabéns pelo dia de hoje.

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  3. Estas memórias transportaram-me à minha infância na Rua da Estação, no Carregal! Já não conheci o avô mas as imagens que o tio escreveu são-me familiares, creio que o cão que menciona era o Pinóquio, que me fazia companhia também jogar à bola e me ia "levar" e "buscar" à escola primária! E depois da minha infância e juventude no Carregal recordo, com muita saudade, voltar a encontrá-lo, tio, em Março de1973, na Beira, antes da minha ida para o Malawi! Gosto muito de si tio, obrigado por tudo!

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  4. Olá To,
    Foi muito bom ler sua auto-biografia. Meus parabéns!
    Luís Branco

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  5. Parabéns pelo dom da vida. Eu sou a Carla, sobrinha do Antero Fonte. Quando vi o seu texto publicado, copiei e mandei ao meu tio porque sei que ele tem uma amizade por si. Ele não anda nas redes sociais e pediu-me para que eu lhe Fazer chegar a seguinte mensagem:
    “Fiquei comovido c/ a tua historia...
    A vida afastou-nos por causa das suas histórias...
    A FAMÍLIA é de facto o n/suporte. Sem ela, tudo desmurona...
    Estou no mesmo local. Sozinho, mas não solitário, há já 27 anos.
    Enviem notícias.
    Parabens.
    Antero Fonte.”

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