terça-feira, 24 de março de 2020

Comentário de C.V. ao ROMANCE - O MEU PECADO, de Celeste Cortez

Comentário de C.V. ao romance O MEU PECADO, da autora Celeste Cortez: 

No presente lanço, do que vou falar e sem demora é de «O meu pecado». Já não era sem tempo.Apus-lhe, supra, um sub-título, o de «sem sombra de pecado». Não é uma flor. Sequer uma caracterização. É mais simples e mais importante do que isso. Porque é uma impressão minha. Desde há muito, dá-me para escrever que o mundo que cada um vê  é sobretudo impressão. Há quem chame a esta forma, não sei se pedantemente, há quem lhe chame realidade sensorial. Eu próprio, em dias menos serenos, já tenho clamado que nada mais existe senão impressões.  

Seja como for, é impressão minha que o seu livro foi feito a pedido. Sendo conhecido o desvelo que a AUTORA põe naquilo que escreve, sendo notória, a agudeza dos seus juízos, sendo apreciado o seu bom gosto vocabular, dona que é de uma sensibilidade desperta e adestrada, ALGUÉM lhe bateu à porta e pediu : 
- «Há um RIO que corre em mim que nasceu doce e mondeguinho,(***) ganhou  balanço em declives de rocha para subir e lá do alto se fazer gente, fazer largo e, sem perder viço, sem perder nervo, inundar vales, alastrar planícies e, com bravura,  sagacidade, também, penetrar na vaga oceânica e debaixo dela fazer chão, chão forrado de saudades, mais de vigores e de quereres, que, com que explodindo, se estendeu até à meta infinita da áfrica moçambicana, arrasando, arrasando ? arrasando, claro que não, mas arrastando, envolvendo solos e faunas, floras e também ferro e cimento, com gente gente e gente meia gente crescendo, labutando, miscigenando.
 RIO que não vai nunca parar, em sucessivas torna-viagens, de cá para lá, de lá para cá, levando e logo trazendo, trazendo e logo levando gente, muita gente, muita pedra, muita terra, muita coisa assim, muita coisa assado,muita espuma, muito tudo. 
Por isso eu  rogo à Autora Desígnio que, sem demora, deste meu Rio faça Verbo. Verbo romance, por exemplo. Um, dois, dez, quantos lhe aprouver.  Sendo desígnio, não vai falhar, tenho a certeza. 
Não vou descodificar. Vou apenas dizer que das três entidades consideradas, Autora, Requerente e Rio, só a primeira se encontra individualizada.  Mas é ululantemente óbvio  que a Autora também é Rio, também foi dele, também é dele paisagem e caminho, leito e corrente, margem e precipício. E a saga do Rio também é sua.  Ela, a Autora é Rio, pois. Sendo também a entidade que falta, sendo também Requerente. Por exigência de si própria. Faria algum sentido que «O meu pecado» ou «Mãe Preta» ficassem por ser escritos ? 
Falando por mim, por mais profundezas do meu mundo que eu queira convocar, não faz sentido nenhum as coisas não terem sentido. No meu mundo e no mundo de qualquer pessoa. Vejamos o seu, arriscando questioná-la da seguinte maneira : conseguiria respirar se não tivesse conseguido conceber e depois dar à luz «O meu pecado», por exemplo. ? Não posso, claro que não posso, nem devo nem quero, mas, se pudesse responder por si, sabe como respondia ? Respondia com um só palavra : IMPOSSÍVEL !Tudo  o que precede é, pois, a razão de ser do dito apêndice : «sem sombra de pecado». A natureza é sempre imperativamente impecável. Falo da natureza de cada um, também. Daquilo que, vindo de fora ou não, cria raízes dentro de nós. 
Mas como conciliar isso com o pecado original,   tátátárátá, tátátárátá... ? Passo.E vou finalmente «analisar» «O Meu Pecado». Entre comas, a minha análise ? Claro que sim. Não sei, não sei mesmo fazer crítica literária. O que sei e vou fazer é juntar um certo número de frases dispersas e dizer do que gostei mais e  de que gostei menos. Deixando opinião, aqui e ali. Mais pelo nariz do que testa. Coloquialmente. Opiniões que  valem o que valem. Nem sequer são dadas para valer. Com uma excepção. Enorme excepção. Nem sei se as excepções se podem medir. Mas esta vale. Fica para o fim. Não fosse eu um «lérias» e podia nessa só frase - que direi  adiante -  resumir a minha visão sobre o seu livro.
     Muito bem. Em vez de almas do outro mundo, do Penteadinho,(***) em vez, também, das surumbáticas «Meninas», a minha querida Amiga resolveu inundar de rosas e sol a Quinta de Cabris. Chamou-lhe quase sempre «Solar de Cabris". Fez bem. Tirou-lhe o cheiro a vinho. Que, aliás, muito respeito. Mas não neste contexto. Naturalmente. Trazendo com as rosas, porventura,  a rescendência  de uma  Morgadinha dos Canaviais, duns Fidalgos da Casa Mourisca, mais estes, tendo em conta o seu impertinente dr Aníbal. Sendo de formato clássico, por isso mais difíceis de compor, compôs muito bem as personagens Maria Teresa e Virgolina. Não vestia a camisola Cabris, mas junto-lhe o advogado Eduardo Teles. Conheci vários como ele e mais, muito mais, o seu oposto. Mais esbatida a Gertrudes, talvez devido à proximidade com a figura menos biológica, menos nervos e sangue  de todo o romance. Exactamente ele, o Padre Ramiro. Mau grado a sua empenhada missão de tarefeiro barra medianeiro. Fernandinha é sombra e, como tal, bem encontrado o leve sombreado com que a moldou. Sombra é sempre sombra de alguma coisa. Neste caso, diria eu, sombra dos problemas mal resolvidos do seu marido. 
Quanto a este, ao José Eduardo. Vou ser talvez injusto para com ele. Nada tem a ver com quem ficcionalmente  o criou. Mas ele não merecia a Ritinha, não senhor. Um bonzinho. No fundo, um chirombo, como se dizia pelos nossos sítios há sessenta anos. Se foi este o retrato que lhe quis tirar, aplaudo de pé. Se não, até percebo. Mas não aplaudo.
Era-lhe escamoteada a correspondência em casa e ele não dava conta ? Dahhhhh ! - como dizem as minhas netas.
Foi à África do Jorge Jardim e veio de mãos a abanar ? Por amor de Deus. 
O que ele sobretudo não mereceu foi a luminosa e imaculada noite de amor de que nasceu Raquel. Se merecesse, não iria depois, fumando cigarros uns atrás dos outros, deitar-se com a Fernandinha para a vida inteira. Forever...
 Quanto às figuras nucleares do seu romance. Ritinha ganha. Tem mais poesia, tendo Raquel também muita. Ah, já sei por que, a meu juízo, prefiro Ritinha. Literariamente falando. É que não deu à Raquel o dom quase divino da fragilidade. As vitórias da Ritinha - e muitas teve - foram sempre contra Golias. Com a Raquel foi diferente. Ganhou sempre. Até um pai. Lutava muito mas nunca contra Golias. A Mãe jamais permitiu que ela tivesse lutas desiguais. Sendo pobre, de família sem pai, cercada de víboras, lá e cá, na selva lisboeta, podiam parecer mas de facto não eram desiguais as lutas que travava. Tendo a seu lado uma mãe daquelas.
Do pouco que sei de crítica literária,  noto que há autores que se encarniçam todos contra a criação de personagens ideais em romances de cunho realista. Não tenho sobre o assunto posição sustentada. Nem pouco mais ou menos. Tocando  só de ouvido, sou levado  a «soprar» o seguinte : a exageração das virtudes, mais ainda, a exclusão de fraquezas e de pecados em norma tira vida, às vezes mata, mata mesmo a personagem.  Mas não só : quantas vezes, é a  componente romanesca que fica a perder. Eu, que sou tonto, diria que, não raro, é o lado poético que também se esvai. O que é uma pena...
Muitos anos atrás, os exemplos clássicos desta «guerrinha» entre críticos eram sobretudo estes dois :  a Morgadinha dos Canaviais e a Maria Eduarda Maia. Nos meios que então frequentava, reconheço agora, eu era sobretudo um grande atrevido. Tão atrevido que até tinha opinião. E falava, bem pior, escrevia, que a Morgadinha dos Canaviais, sendo eu um admirador confesso de Júlio Dinis, era a figura mais sinistra da literatura portuguesa. Da Maria Eduarda tenho até mais textos sobre o que, com alegre leviandade, qualificava como o grande deslize literário de Eça de Queirós. Talvez porque ninguém me mandou calar a tempo, continuo do Sporting, perdão, distraí-me, continuo a «mandar vir» contra tão assumidas prima donas.
Atenção ! As suas Ritinha e Raquel não são nada disso. Por um sem número de razões. Por que a D. Celeste não lhes deu «claque», como deram às outras. Porque não lhes deu moda e chique, como se deu à Eduarda. Nem senhorice nem maneiras como se deu à Morgadinha.
Se o seu filme romance se prolongasse, sei lá, talvez a Raquel, nos seus quarentas, das outras duas figuras se  viesse a aproximar. Ao candidatar-se por exemplo à Presidência da Câmara. Não devendo. Pelas minhas contas, dificilmente ganharia. Com este dedo que adivinha (que afinal, os homens também têm) vou já dizer porquê. Por constarem do seu programa alguns incentivos à cultura e outros escândalos do mesmo jaez. Elementar, meu caro Watson !  
Reparou naquela minha «boca»  do filme romance ? Ora muito bem, vai servir de pé (assim se falava e bem) à minha única opinião objectivamente relevante sobre o seu livro. Neste sentido : o que vou dizer não é apenas «um vale o que vale» como são todas as minhas opiniões que precedem. No caso com  que remato a minha análise, o meu juízo tem valor absoluto. 
Adianto já o juízo, O fundamento, (a «evidence») trago a seguir. É este o juízo : «O meu pecado» é dos romances mais apelativos que alguma vez eu li na vida. Com condições para ser (ou ter sido ou estar a ser - isso já não sei) um romance de grande sucesso. Não me interessa absolutamente nada vir aqui sublinhar aquilo que o romance não é (impecável, fremente,  emblemático, de fazer escola, inovador, e de mais algumas qualificativos inúteis) perante esta demolidora e irrefragável  realidade : eu, César V....., após, dias antes, ter lido 25 páginas deste seu romance, retomo a leitura pelas 22 horas  do dia 6 ou 7, não posso precisar, vou-me deitar pela meia noite e já pedrado pelo  que estava a ler, continuei pela noite dentro, fechando a obra e fechando a luz  passavam 15 minutos das quatro da matina. Tal e qual.
Acima, gastei alguma prosa a apreciar o desenho das personagens. Gasto um pouco escusado perante a avassaladora circunstância de que o romance vale pelo movimento, pela dinâmica, pelo fluir / cadência da intriga. Serve ao leitor quer a sua África quer o nosso Carregal sempre ao jeito do cinema, dando vida e cor aos sítios e, bem assim, à linha condutora dos acontecimentos. Por isso lhe chamei atrás,  um filme romance.
E pronto. Despeço-me até.... No interim, festas felizes para os dois e demais (mas nunca de mais) família.
Votando com a Fátima no que mais importa :  por tudo aquilo que anseiam. A todos os níveis e em todos os continentes.
Cordialmente CV  
CV, o autor do comentário ao romance "O Meu Pecado", que se diz não ser critíco literário e oficialmente não o é, mas sim membro diretivo de uma Associação Literária que dissemina a literatura de um dos maiores escritores portugueses. Agradeci por email ao Sr. Dr. César V, mas, como lhe transmiti, não julgo a minha obra tão relevante para um comentário tão especial. Mas agradeço imenso o facto de ter referido, feito julgamento, a cada uma das personagens do romance. Só, na minha opinião, deixou o Dr. Zé mal colocado, uma vez que eu, autora, não pensei nunca rebaixá-lo, na medida em que quem tem problemas de "depressão", como ele teve, pode atuar como ele o fez. Que me perdoe o digníssimo comentador. 
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Onde estão os asteriscos, explica-se:  (*)"mondeguinho", referido pelo autor do texto, refere-se ao Rio Mondego que nasce como "mondeguinho" num pequeno local da Serra da Estrela em Portugal.  (**) Penteadinho - no romance O Meu Pequeno, a autora refere como Solar de Cabriz - e não quinta de Cabriz - que nos anos em que esteve abandonado, o povo crente em bruxas e lobisomens, dizia aparecer lá o "Penteadinho". 
A autora acrescenta que escreveu e publicou outro romance, com o título de "MÃE PRETA", de que se dá conta em outros lugares deste blogue. Escreveu mais romances, ainda não publicados. Contudo tem um que desejaria ter publicado e por diversos motivos ainda não foi possível. Um dia acontecerá, como num conto de fadas em que tudo dará certo no final. 
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