Mamã,
Nasceu em 1917, teria agora cem anos. O que são 100 anos nesta época em que imensas pessoas perfazem essa idade? Mas a mamã deixou-nos quando tinha percorrido ainda um caminho menos longo, apenas com 68 anos acabados de fazer!
Embora eu já fosse senhora da minha vida e mãe de filhas, não quer dizer que não me fizesse falta. Uma mãe faz sempre falta.
Mas fez também falta às pessoas a quem ajudava sem querer dar nas vistas:
À Cândida que era cega e não tinha dinheiro para viver. A mamã comprava uma galinha, condimentava-a saborosamente, cozinhava-a com arroz e mandava entregar a casa da Cândida dois ou três bocados, dos maiores... e que não tivessem osso.
Ao Larula, que, por ser doente mental, se esquecia das horas de regresso a casa e acabava por encontrar uma palheira (casa de fazenda), da nossa quinta onde se guardava a palha para os animais, os objectos de lavoura. Logo que a mamã se apercebeu que o Larula procurava a palheira, mandou por lá uns fardos de palha para fazer de colchão, uns cobertores e até um travesseiro.
Quem seria capaz de pagar da sua magra pensão mensal a um trabalhador que preparasse um grande espaço de terra e plantasse "flores para os finados"? E a mamã, com muita dificuldade, ia regando as flores, ia dando-lhes ânimo para crescerem e serem bonitas. Chegada a hora, pagava mais uma vez a quem lhe fosse cortar as flores e fizesse umas coroas ou ramos e mandava entregar a casa das pessoas que conhecia cuja pensão era bem magra e que teriam de comprar as mesmas para por na campa dos seus finados.
São tantas as recordações que me vêm à memória e me deixam saudade, querida mamã. Neste momento recordo uma pequena parte de um poema de Fernanda de Castro (1900-1994) que soube descrever o que são saudades:
As coisas falam comigo
numa linguagem secreta,
que é minha, de mais ninguém.
Quero esquecer, não consigo.
Vou guardar na mala preta
esta dor que me faz bem.
Fernanda de Castro, in "E Eu, Saudosa, Saudosa"
Bem me lembro da avo, era uma pessoa com um grande coracao.
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