terça-feira, 20 de setembro de 2016

POEMAS QUE ÁFRICA GEROU - FERNANDO COUTO

POEMAS QUE ÁFRICA GEROU, é um título que tem continuidade em diversas páginas deste blog. (blogue, em português de Portugal). São poemas de poetas que passaram por África, ou que ali nasceram, poemas ali engendrados, saídos dos seus corações de poetas.

FERNANDO LEITE COUTO, pai do escritor MIA COUTO de Moçambique, foi jornalista e poeta. Trabalhou em Portugal como jornalista e em Moçambique. Ali fundou a Editora Ndjira. 

Nasceu próximo do Porto, faleceu em Moçambique.


Manifesto
Poesia não te peço trigo
pois sei que não és seara
e nem ao menos és terra.
Quero-te só cotovia
no espesso dos trigais
e canto da madrugada.
Não podes servir de pão
a quem outro não tiver.
Podes uivar e chorar
ser o grito de esfaimados
bandeira de barricadas
cólera das nossas veias
mas não és terra ou seara
Nem balas nem espingardas.
Quero-te só cotovia
Íntima voz do meu sangue.
- Fernando Couto (1967), em "Uma voz cheia de vozes". Maputo: Editorial Ndjira, 2015.



Na agreste paisagem de dunas
expira a vastidão da savana.
No areal se sepulta o choro do mar
em seu clamor e seu soluço
e a fúria do vento largo
veste de saliva os arbustos sobreviventes.

Mangal de raizes nuas
doí-me o desespero dos teus dedos
ainda longos e cravados à terra.
Na orla do tempo, as aves marinhas
contemplam os despojos com olhos tranquilos 
e nos conturbamo-nos à vista 
dos despojos e do jeito dos pássaros.

Aqui, só nos vemos
a delgada fímbria do encontro
da morte e da vida
e conturbamo-nos.
E, amando-nos,
avivamos o traço esguio e sinuoso
dessa fímbria de encontro de morte e da vida
- Fernando Couto, em "Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX: Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau". [coordenação Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco]. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999.

O amor diurno
Em teu sereno rosto
se ergueu o vento
querida
uma leve crispação
corre a sua linha de água
em tuas feições ondulando
querida
Teus olhos se fecharam
querida
lagos sobmersos
pejados de trevas e desejos
de prazer e dor
ó doce querida
Mar nocturno e agitado
e sua audível presença
querida
um grito surdo
túmido e lento agoniza
em tua garganta opressa
ó doce querida
Tuas mãos esguias
minha querida
asas transparentes e brancas
de aves aquáticas
um vento de loucura
as possui e agita
desnorteados barcos
navegando às cegas no meu corpo
minha querida 



Em teu sereno rosto
agora apaziguado
o vento torna a ser brisa
querida
com a quietude das manhãs de verão
e a fadiga
já sobre a areia
depois do naufrágio
ó doce muito doce querida

- Fernando Couto, poema nº 10 de "O amor diurno". Beira: Edição do autor, 1962.















O medo e a esperança
Tranquilo e devagar entro na aldeia
de mão ao alto aberta em sinal de paz
Desertas e contudo palpitantes
se encontram ainda as palhotas 

No único rosto presente é visível
o medo está atento procurando antecipar-se
nos meandros da incómoda adivinha

Falo e sorrio e entreteço pontes de caniço
e não sei estendê-las até à outra margem:
fechado e atento o rosto em frente do meu
entremeia um rio sem vau e sem barcos
de águas opacas e demasiado largo

Procuro na memória de distantes avós
autênticos e críveis sinais de paz
e ao fazê-lo acordo aves de lembranças
de ventres pejados de sangue e ódios
e apenas avivo o rosto em frente as cores do medo

Olho o meu braço estendido e nu
inofensivo e pronto à espera do acolhimento
e no rosto em frente projecta-se uma sombra
a dolorosa sombra-lembrança de um chicote
E o medo ganha relevo no rosto escuro
atento e vigilante à porta da palhota:

pergunto aos teus olhos e às tuas costas
à tua carne e ao abismo dos teus olhos
onde e quando brotou a fonte desse medo
— como se eu fosse o deus vivo do raio
e fizesse empalidecer o teu rosto cor de noite
a ti que nunca me viste e contudo és valente
e já viste de perto a fome de feras em liberdade

Quero perguntar de frente aos teus olhos
e a tua cabeça pende como um ramo
ameaçado de morte com o peso dos frutos
prestes a perderem-se inúteis em chão batido
Quero perguntar-te e não sei os gestos
nem as palavras mágicas ou compreensíveis
para conjurar a mancha de medo
que ensombra o teu rosto esculpido em negro

Capa do livro Rumor de água,
de Fernando Couto
Não sei os gestos e as palavras mágicas
e todavia não desisto e procuro
certo de haver uma ponte praticável
entre os meus e os teus olhos erguidos.
- Fernando Couto, em "Rumor de água" (antologia poética).. [Organização Ana Mafalda Leite]. Maputo: Editorial Ndjira, 2007.



Praia do savane
Tu apenas tu e rodeando-te
a imensidão do mar
e a savana imensa
e o céu abrindo e fechando
todo o horizonte à sua volta.

O bramido oceânico
e o fundo silêncio da savana.
E a solidão a solidão
e as aves marinhas
confirmando a solidão ...

Livre te sentes é verdade
mas também perdido
e inútil esta liberdade
Adão que és agora ínfimo
desolado e inquieto
contemplando o mar perplexo
contemplando-o como se as ondas
te pudessem decifrar o mistério
desta absurda criação
de deserto de mar e de terra
de silêncio de vento e de aves ...
- Fernando Couto (1985), em "Monódia". Maputo: Edição AMOLP, 1987.


Paisagem africana
Em chamas de amarelo e rubro íntimos
inquietas deliram as flores de acácia

fofas e tépidas as dunas impudentes

imitam feminis curvas em consentimento

da terra solta-se o hálito escladantes

de sequisoas bocas em beijo interrompido

Verdes-escuras as folhas dos arvoredos

turvas pesam como um desejo insatisfeito

denas as florestas odorantes a húmus

respiram o ácido cheiro do suor de cópula

crestado o capim estremece compacto

como a epiderme ocorrida por um frémito

brutais os rios rasgam a carne das planícies

como soldados invasores às filhas dos vencidos

e à brutal excitação de um sol desumano

a terra de África abre a flor de duas pétalas rosáceas

- Fernando Couto, em "Rumor de água" (antologia poética).. [Organização Ana Mafalda Leite]. Maputo: Editorial Ndjira, 2007.

 De súbito,
   a tristeza nasce no teu rosto,
   suave, densa e silenciosa
   – céu da África ainda sem noite nem dia

   A lua,
   tua irmã africana,
   irrompeu dos teus ombros,
   esplendorosa e suave.

   E ao gesto diáfano das tuas mãos
   incendiou-se a noite.

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