Quando, por vez, encontramo-nos com livros que são verdadeiros
compêndios de erudição, sentimo-nos afagados no espírito. Recebemos os
originais de Cântico de Palavras com
gentil convite para prefaciá-lo e criamos a expectativa de encontrar neles
apenas um conjunto de aldravias. Que nada! Encontramos um tratado de poesia, no
qual a aldravia é tratada com didática e carinho maternos; apresentada com a
parcimônia da professora das primeiras letras – passo a passo – a dizer como e
porque tecer poesia breve, própria à infância perene da linguagem gerativa,
ampliada a cada dia e capaz de fazer sentidos novos e inusitados de sílabas
apenas, metonímias de palavras não prontas no aparelho fonador ainda em
formação. Arnauld e Lancelot na Gramática de Port-Royal (1660) dizem que “essa
invenção maravilhosa de
compor,
com vinte e cinco ou trinta sons, essa variedade infinita de palavras (...)
revela aos outros t odo o seu
segredo e faz com que aqueles que nele não podem penetrar compreendam tudo
quanto concebemos e todos os diversos movimentos de nossa alma”.
No mesmo espírito da formação das palavras, a aldravia abre a
possibilidade da revelação pela fecundidade – do pouco que se faz muito – da
significação, propriedade de não se poder prender a linguagem num dicionário,
mas de tomá-la do dicionário à maneira da semeadura, para promover o milagre da
multiplicação dos sentidos.
Os árcades de Minas Gerais, Brasil, no século XVIII, ensinam pela
poesia que a expressão livre é condição para a libertação. Fecundando esse
ensinamento, os poetas aldravistas na abertura do século XXI clamam por
libertação da poesia e propõem a liberdade como forma poética, batendo aldravas
para que portas se abram para significações amplificadas nos movimentos de
entrar ou sair – o ambiente interno é de convivência em aconchego; o ambiente
externo é de convivência para novas relações – ambos revelam espaços de
experimentação da liberdade.
As aldravias de Celeste Cortez trazem à realidade, neste livro que
nasce como cântico de palavras, aquilo
que o desejo árcade preconizava como bandeira – a liberdade:
liberdade
de
escrever
sem
amarras:
aldravias
O leitor deste livro terá o privilégio de viajar com a expressão
dos movimentos da alma, libertos como os ventos que sopram pensamentos bons.
bons
pensamentos
palavras
leva-as
o
vento
Numa leitura livre da Poética de Aristóteles (323 aC.),
as aldravias de Celeste Cortez põem melodia (melos) em poucas palavras (lexis)
e criam um grandioso espetáculo (opsis), valendo-se da representação
(mimesis)
de um tema (dianoia), cujo argumento (mythos)
eleva o caráter (ethos). Eis que o leitor de cântico
de palavras tem em cada aldravia uma experiência plena de todas as
características fundamentais da poesia, na mais pura acepção de poética –
melodia na representação de um tema que eleva o caráter e constrói o grandioso
espetáculo da construção dos sentidos.
rumor
da
cascata
ouve-se
em
quietude
Sentimentos privados também são deliciosamente confessados nas
aldravias deste livro. À semelhança do bíblico livro Cântico dos Cânticos, breve na extensão, mas denso em sua
complexidade em que Salomão faz uma poética da união pelo amor, de forma
celestial Cortez canta louvores à vida, à união, à natureza, ao amor:
em
conjunto
limando
imperfeições
casamento
perfeito
Ironia jocosa percebemos na alusão à metrificação que outrora tanto
fez seletivo o clube dos poetas. Justo na terra dos trovadores, em que a
métrica tamborilada nos dedos mede as tônicas das redondilhas maiores e menores
ou dos decassílabos hendecassílabos e alexandrinos, as aldravias libertam os
poetas do confinamento da melodia ao metro.
A melodia liberta faz cantar a própria sequência de palavras na sua
cadência natural na escolha enunciativa – o pulso sentido é o do coração do
poeta:
aldravias
escrita
sem
tamborilar
com
dedos
A metonímia como figura fundamental da aldravia é explorada nos
poemas deste livro, em mostra inequívoca do desejo de a poesia ser ação
partilhada de poeta e leitor, sem imposição interpretativa.
no
galho
seco
melro
canta
madrugadas
Fazer aldravia é construir uma nova forma de poesia, da poesia da
alma, do espírito liberto, da transposição direta dos sentimentos para as
palavras, sem interposição de elementos que tornam falsas as significações
nascidas das emoções emanadas dos contatos com os universos visíveis e
invisíveis.
Brilhantemente, Celeste Cortez em Cântico de Palavras faz as emoções transbordarem dos seus vales
interiores, consagrando em território europeu a contribuição brasileira ao
patrimônio literário da humanidade – a aldravia – de cujo cânone extrai a
essência da poeticidade, em que a mente livre é fonte de emoções naturalmente
poéticas...
tijolo
constrói
casa
mente
constrói
emoções
Aos caros leitores deste Cântico
de Palavras, que as emoções disponíveis nesses versos não sejam contidas.
Boa leitura!
J. B. Donadon-Leal (Doutor em
Semiótica) e Andreia Donadon Leal (Mestre
em Estudos Literários)
Mariana, Minas Gerais – Brasil - 22 de outubro de 2013
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