segunda-feira, 6 de março de 2017

ALDRAVIAS - CÂNTICO DE PALAVRAS, livro de Celeste Cortez


Quando, por vez, encontramo-nos com livros que são verdadeiros compêndios de erudição, sentimo-nos afagados no espírito. Recebemos os originais de Cântico de Palavras com gentil convite para prefaciá-lo e criamos a expectativa de encontrar neles apenas um conjunto de aldravias. Que nada! Encontramos um tratado de poesia, no qual a aldravia é tratada com didática e carinho maternos; apresentada com a parcimônia da professora das primeiras letras – passo a passo – a dizer como e porque tecer poesia breve, própria à infância perene da linguagem gerativa, ampliada a cada dia e capaz de fazer sentidos novos e inusitados de sílabas apenas, metonímias de palavras não prontas no aparelho fonador ainda em formação. Arnauld e Lancelot na Gramática de Port-Royal (1660) dizem que “essa invenção maravilhosa de
compor, com vinte e cinco ou trinta sons, essa variedade infinita de palavras (...) revela aos outros t      odo o seu segredo e faz com que aqueles que nele não podem penetrar compreendam tudo quanto concebemos e todos os diversos movimentos de nossa alma”.

No mesmo espírito da formação das palavras, a aldravia abre a possibilidade da revelação pela fecundidade – do pouco que se faz muito – da significação, propriedade de não se poder prender a linguagem num dicionário, mas de tomá-la do dicionário à maneira da semeadura, para promover o milagre da multiplicação dos sentidos.

Os árcades de Minas Gerais, Brasil, no século XVIII, ensinam pela poesia que a expressão livre é condição para a libertação. Fecundando esse ensinamento, os poetas aldravistas na abertura do século XXI clamam por libertação da poesia e propõem a liberdade como forma poética, batendo aldravas para que portas se abram para significações amplificadas nos movimentos de entrar ou sair – o ambiente interno é de convivência em aconchego; o ambiente externo é de convivência para novas relações – ambos revelam espaços de experimentação da liberdade.

As aldravias de Celeste Cortez trazem à realidade, neste livro que nasce como cântico de palavras, aquilo que o desejo árcade preconizava como bandeira – a liberdade:
liberdade
de
escrever
sem
amarras:
aldravias

O leitor deste livro terá o privilégio de viajar com a expressão dos movimentos da alma, libertos como os ventos que sopram pensamentos bons.

bons
pensamentos
palavras
leva-as
o
vento

Numa leitura livre da Poética de Aristóteles (323 aC.), as aldravias de Celeste Cortez põem melodia (melos) em poucas palavras (lexis) e criam um grandioso espetáculo (opsis), valendo-se da representação (mimesis) de um tema (dianoia), cujo argumento (mythos) eleva o caráter (ethos). Eis que o leitor de cântico de palavras tem em cada aldravia uma experiência plena de todas as características fundamentais da poesia, na mais pura acepção de poética – melodia na representação de um tema que eleva o caráter e constrói o grandioso espetáculo da construção dos sentidos.

rumor
da
cascata
ouve-se
em
quietude

Sentimentos privados também são deliciosamente confessados nas aldravias deste livro. À semelhança do bíblico livro Cântico dos Cânticos, breve na extensão, mas denso em sua complexidade em que Salomão faz uma poética da união pelo amor, de forma celestial Cortez canta louvores à vida, à união, à natureza, ao amor:

                                                               em
conjunto
limando
imperfeições
casamento
perfeito

Ironia jocosa percebemos na alusão à metrificação que outrora tanto fez seletivo o clube dos poetas. Justo na terra dos trovadores, em que a métrica tamborilada nos dedos mede as tônicas das redondilhas maiores e menores ou dos decassílabos hendecassílabos e alexandrinos, as aldravias libertam os poetas do confinamento da melodia ao metro.

A melodia liberta faz cantar a própria sequência de palavras na sua cadência natural na escolha enunciativa – o pulso sentido é o do coração do poeta:

aldravias
escrita
sem
tamborilar
com
dedos

A metonímia como figura fundamental da aldravia é explorada nos poemas deste livro, em mostra inequívoca do desejo de a poesia ser ação partilhada de poeta e leitor, sem imposição interpretativa.
                                                                 no
galho
seco
melro
canta
madrugadas


Fazer aldravia é construir uma nova forma de poesia, da poesia da alma, do espírito liberto, da transposição direta dos sentimentos para as palavras, sem interposição de elementos que tornam falsas as significações nascidas das emoções emanadas dos contatos com os universos visíveis e invisíveis.


Brilhantemente, Celeste Cortez em Cântico de Palavras faz as emoções transbordarem dos seus vales interiores, consagrando em território europeu a contribuição brasileira ao patrimônio literário da humanidade – a aldravia – de cujo cânone extrai a essência da poeticidade, em que a mente livre é fonte de emoções naturalmente poéticas...
tijolo
constrói
casa
mente
constrói
emoções


Aos caros leitores deste Cântico de Palavras, que as emoções disponíveis nesses versos não sejam contidas. Boa leitura!
J. B. Donadon-Leal (Doutor em Semiótica) e Andreia Donadon Leal (Mestre em Estudos Literários)
Mariana, Minas Gerais – Brasil - 22 de outubro de 2013





     

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