quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O SEU SONHO, A MATERNIDADE, NÃO FOI REALIZADO, MAS...

“Moçambique — Chimoio, Vila Pery:
Apesar da dor que sentia no peito, que mal me deixava respirar, não poderia parar. O sol que, quando deixara a casa do Simião, parecia uma enorme bola de fogo amarelo-avermelhada, tinha já desaparecido para os lados da Serra do Vumba.”

Assim começa o romance Mãe Preta.

Celeste Cortez, relata-nos, de forma muito peculiar, a vida de uma jovem moçambicana cuja ambição maior era, simplesmente, SER MÃE. Lina é a personagem central deste enredo que embora sendo ficcional é também um relato, bastante elucidativo, do que foram os aspetos sociais e culturais de Moçambique durante o período colonial.
          Lina, uma jovem mulher moçambicana, que por imposição da família (pai) casara com um negro assimilado, descreve-nos de forma quase poética o périplo da sua atribulada vida. A descrição vai deambulando entre a sua infância e a vida adulta, entre vivências dolorosas do quotidiano e divagações pelas memórias mais remotas de momentos felizes … com breves incursões sobre a história e a cultura do seu povo, como forma de justificar ou explicar, perante o leitor, a razão de ser de alguns episódios.
          Com frequente recurso a expressões idiomáticas, a termos dos diferentes dialectos falados em Moçambique e a expressões que traduzem, literalmente, a oralidade, o leitor é convidado a viajar no tempo e no espaço, “presenciando” em loco os diálogos dos diferentes interlocutores.
       Este romance faz também uma caracterização socioeconómica de Moçambique na época colonial, referencia as principais ocupações profissionais da época, que vão desde o trabalho nas grandes plantações de algodão, a migração de trabalhadores para as minas de ouro da então Rodésia (actual Zimbabué) e da África do Sul e a agricultura, para sustento próprio, desenvolvida, essencialmente, pela mão-de-obra feminina.
          Também o trabalho como serviçais, em casa dos senhores brancos (muzumgos/mulungo), era prática corrente.
          Geralmente, as jovens das aldeias cedo começavam a fazer pequenos serviços em casa dos patrões. Também Lima não fugiu à regra. Cedo começou a cuidar dos meninos brancos e a ter contacto com a cultura ocidental – outras mentalidades, outros costumes, outras tradições – foi, assim, assimilando facilmente os costumes e a religião dos brancos, embora jamais perdesse as suas características africanas, como o linguajar e as crenças nos seus deuses primitivos.
          O contacto e assimilação de outras culturas resultaram num conflito entre as idiossincrasias tradicionais e de modernidade relativamente ao entendimento da sua condição de mulher moçambicana. Determinadas práticas culturais são reavaliadas o que a levará a questionar costumes bastante enraizados da sua cultura, como a prática do lobolo ou da poligamia.
    Ao longo do romance, Lina vai-se revelando uma alma dotada de sentimentos extraordinariamente nobres, uma mulher que nada mais ambiciona do que SER MÃE, o poder dar o seu amor maternal de forma incondicional.
          Os anos foram passando e Lina não conseguira realizar o seu sonho – a maternidade. Contudo, a mãe preta que ama os filhos que não teve, descobriu que o amor que tem dentro dela pode ser oferecido a outras crianças. E a uma em especial.
          Uma escrita viciante e cheia de surpresas,  guiada por uma voz feminina que acompanha toda a narrativa.
                                                       
 Rosa Maurício (Bibliotecária da Biblioteca Municipal de Carregal do Sal)

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