Com a devida vénia, transcrevo parte do artigo publicado no dia 10 de Junho de 2011, de Miguel Esteves Cardoso, no jornal "Público"
..."Amo-te, primeiro, por não seres outro
país. Amo-te por seres Portugal e estares cheio de portugueses a falar
português. Não há nenhum outro país, por muito bom ou bonito, onde isso
aconteça.
Mesmo que não achasse em ti senão defeitos e razões para deixar de te amar, preferia isso, mesmo deixando de te amar, a que não existisses.
Se deixasses de existir, o meu olhar ficava de luto e nunca mais podia olhar para o resto do mundo com os olhos inteiramente abertos ou secos ou interessados.
Para que continuasses a existir, mesmo fazendo cada vez mais merda, trocava imediatamente ir-me embora de ti e nunca mais poder voltar e nunca mais poder ver-te, e nunca mais encontrar um português ou uma portuguesa, e nunca mais poder ler ou ouvir a língua portuguesa.
E olha que este é um desejo que muitas vezes tenho.
Esta é a única verdadeira prova de amor: fazer tudo para que sobreviva quem se ama. Mesmo que nunca mais te víssemos, Portugal, saberíamos que continuavas a existir, que as nossas saudades teriam onde se agarrar.
Mesmo que não achasse em ti senão defeitos e razões para deixar de te amar, preferia isso, mesmo deixando de te amar, a que não existisses.
Se deixasses de existir, o meu olhar ficava de luto e nunca mais podia olhar para o resto do mundo com os olhos inteiramente abertos ou secos ou interessados.
Para que continuasses a existir, mesmo fazendo cada vez mais merda, trocava imediatamente ir-me embora de ti e nunca mais poder voltar e nunca mais poder ver-te, e nunca mais encontrar um português ou uma portuguesa, e nunca mais poder ler ou ouvir a língua portuguesa.
E olha que este é um desejo que muitas vezes tenho.
Esta é a única verdadeira prova de amor: fazer tudo para que sobreviva quem se ama. Mesmo que nunca mais te víssemos, Portugal, saberíamos que continuavas a existir, que as nossas saudades teriam onde se agarrar.
Mesmo que não houvesse em ti um único pormenor que não houvesse nos restantes
países do mundo, que são muitos; mesmo que houvesse um país escondido que fosse
igualzinho a Portugal em todos os pormenores; mesmo assim eu amar-te-ia como se
fosses o único país do mundo, diferente em tudo.
Portanto, já viste, ó Portugal: não preciso de nenhuma razão para te amar.
Amo-te sem razão. Amo-te às cegas, antes sequer de olhar para ti. Podes ser o
pior país do mundo, ou o melhor, ou o mais monotonamente assim-assim. Não me
interessa. Amo-te. Amo-te à mesma. Amo-te antes de falarmos nisso.
Amo-te tanto que, quando perguntas porque é que eu te amo, não fico nervoso nem
irritado. Não preciso de tentar dar uma razão convincente. Amo-te à mesma,
fiques ou não convencido.
E, mesmo que te aborreças de ouvir todas as razões que tenho para te amar, eu
continuarei a dizê-las, porque gosto de dizê-las e porque, que diabo, também eu
preciso, às vezes, de me lembrar e de me convencer do quanto eu te amo.
Amo-te mesmo que sejas impossível de conhecer ou de descrever. Isto é muito
importante. O Portugal que eu conheço e descrevo é apenas o Portugal que eu
julgo, se calhar, conhecer (pouco) e descrever (mal).
Cada pessoa apaixonada por ti está apaixonada por um Portugal diferente do meu.
Até o meu Portugal é, conforme os climas, bastante diferente do meu - para não
dizer estrangeiro.
Por exemplo, uma das razões por que te amo é o teu clima. Acho que tens um bom
clima. Mas não julgues que há muitos portugueses apaixonados por ti que
concordam comigo. Esses julgam o teu clima dia a dia e hora a hora e gostam
dele, quando muito, vinte por cento do ano. Em cada cinco horas do teu clima,
gostam de uma e odeiam quatro.
Pois eu amo-te sem saber sequer se o teu clima é bom ou mau. Não tenho a
certeza, mas não interessa: amo-te mesmo ignorando tudo a teu respeito. Amo-te
mesmo estando completamente enganado. A pessoa convencida sou eu. Quem está
convencido que ama, quando fala do seu amor, não quer convencer ninguém. Quer
declarar que ama. Se é bom ou mau nem secundário é. Fica noutro mundo, onde
vivemos.
Como vês, não preciso de razões para te amar. Mas tenho muitas. E boas. A
primeira delas é secreta e embaraça-me confessá-la: amo-te, Portugal porque,
não sei como e contra todas as provas e possibilidades, acho que és o melhor
país do mundo.
Pronto. Está dito. É uma vergonha pôr as coisas de uma maneira tão simples. Mas
era isto que eu estava há que séculos para te dizer: amo-te, Portugal, por
seres o melhor país do mundo.
Como vês não sou o romântico que estava a fingir ser, que te ama sem precisar
de razões para isso. Tenho uma razão muito interesseira para te amar: acho que
és o melhor país do mundo. Por muito relativista que eu seja noutras coisas,
acho mesmo que tive sorte de nascer aqui. Em ti. Aqui, entre nós.
Desculpa.
Mesmo assim, insistes em perguntar: que tens tu de tão especial, que os outros
países não têm?
Essa íntima vaidade, por exemplo. Tu não és orgulhoso. Mas, muito bem
disfarçada, tens uma vaidade sem fim. Dizes-te feio e vestes-te mal mas, quando
passas por um espelho, espreitas e achas-te giro. E se alguém te diz que és
feio e estás mal vestido, não ficas ofendido - achas que aquela pessoa é
obviamente estúpida e não tem olhos na cara.
Ou, pelo menos, não tem o discernimento e o bom gosto necessários para apreciar
a tua oblíqua mas inegável formosura. A tua beleza, estás convencido, está
reservada para os apreciadores. A ralé passa ao lado e não vê: deixá-la passar.
A tua vaidade é tanta que até te permites um grande desleixo. Sabes que, na
terra onde nada plantaste, há-de crescer um jardim preguiçoso que um dia será
selvagem e bonito, sem qualquer esforço teu. Deus e o tempo trabalham por tua
conta.
Sabes que a tinta fresca salta muito à vista e que é cansativa. Esperas,
despreocupado, pela beleza que há-de vir com a passagem dos tempos. E a vaidade
que sussurra, preguiçosamente, a quem insista em aproximar-se: «Sim, eu sei que
sou uma casa bonita e não, não me lembro da última vez que fui pintada. Eu cá
não preciso de me abonecar.»
Graças ao desleixo que a tua vaidade consente, mudas menos do que os outros
países. As pessoas acham que és conservador, que és contra a mudança. Mas não é
isso. És vaidoso e preguiçoso porque achas que não precisas de grandes esforços
ou mudanças: sabes que continuas encantador.
O teu desleixo também é causa de muito sofrimento mas não é numa carta de amor
que vou falar dele. Também tem consequências agradáveis.
Por exemplo, dizes que queres ser um país de primeira categoria. Mas sabemos
todos que não queres. Gostas de ser de segunda, como gostas de não ser de
terceira. Gostas de ter países melhores do que tu, para visitar ou invocar,
quando fazes aquela fita de lamentar que não seja possível teres tudo o que
tens de bom, menos tudo o que tens de mau, trocado pelo melhor que houver nos
outros países.
Tu não queres nada a não ser que gostem de ti. E não estás disposto a fazer
nada por isso. Nem é preciso serem muitos a gostar. Se calhar, até te bastava
um. Aposto que é essa a impressão que consegues dar a cada um dos desgraçados,
como eu, que estão apaixonados por ti.
Eu poderia perder anos a fazer um cuidadoso retrato de ti. Por muito verosímil
que fosse, davas uma olhadela e dizias com desdém, a fazer-te caro ao mesmo
tempo: «Isso não sou eu. Isso é outro país qualquer que inventaste...»
É a tua maneira, Portugal amado, de garantir que continuaremos a tentar
retratar-te. Tanto te faz que o retrato seja feio ou bonito, desde que seja de
ti.
Quanto mais variados forem, mais gostas. Até tu, nas tuas paisagens, varias e
hesitas tanto e recusas-te a decidir, como quem não tem pressa e, no fundo, não
escolhe nem decide, porque quer tudo.
Preferias ser amado por quem tem razões para te odiar? Isso sei eu. Paciência.
Eu amo-te porque mereces. Eu amo-te pelas tuas qualidades. Preferias não
tê-las. Para que o amor fosse mais puro, mais contraditório, mais
injustificável. Mas tens qualidades.
Desculpa lá dizer-te isto, Portugal, mas amar-te é uma coisa simples.
Amo-te, aconteça o que acontecer. Amo-te por causa de ti. Não é apesar de ti. É
por causa de ti. Não há outra razão. Nem podia haver uma razão mais simples.
Por muito que te custe ouvir (apesar de eu saber que não só não te custa nada
como gostas de ouvir), digo-te: é tão grande o meu amor por ti que até consigo
amar-te sem dar por isso.
Já viste? Miguel
Miguel Esteves Cardoso, in 'Jornal Público' (10 Junho 2011)