quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O MEU HOMEM TERIA MORRIDO?

ToCortez Fotogafia Olhares - Direitos de Autor 
O MEU HOMEM TERIA MORRIDO?
O meu homem teria morrido? Deixei de o ver depois do meu regresso de férias. Andei uns tempitos sem passar por lá. O calor que tem feito ultimamente impediu-me de sair.
O calor? As pessoas dão sempre as maiores escusas para os seus actos.

Era habitual passar por ali, para atalhar caminho para ir para o meu escritório. Sempre que ia a pé, metia por aquele atalho debaixo do prédio, perto das bombas de gasolina, prédio que por baixo tem uma rua para os carros passarem e parquearem. Parque que com o hábito, se foi fazendo, entre duas grandes avenidas, Infante D. Henrique e Avenida 25 de Abril. E as pessoas passam por ali para encurtar caminho. Como andamos sempre com pressa, mete-se por um atalho. O ditado diz "quem se mete por atalhos, mete-se em trabalhos". Os trabalhos é o mal menor nesta história verídica. Mas, não saber se o meu homem morreu, e a minha consciência vacilar entre acusar-me ou absolver-me por isso, é que me dá vontade de nunca mais me meter por atalhos.
O espaço, o tal espaço que os motoristas usam como parque, grátis, e as pessoas utilizam para passar para atalhar caminho, não tem nem nunca teve, qualquer distico de reserva para parqueamento automóvel. Também nada escrito que afirmasse ou afirme que o parque é para transeuntes. Por isso teríamos e temos de conviver amigavelmente: carros e pessoas.
Quantas vezes mentalmente compus um bilhetinho para deixar no pára-brisas de algum automóvel, cujo motorista, sem pensar nos outros, parqueava de tal forma que não deixava espaço para os transeuntes terem acesso ao passeio da rua seguinte. Egoístas! E pensava: Não há nada pior do que a palavra "Eu", quando se conjuga os verbos Quero, Posso, Mando. e outros assim. Como uma palavra só de duas letrinhas, pode atingir proporções tão grandes e desastrosas!
Não cheguei a deixar nenhum bilhetinho. Ou ia com pressa, ou não tinha papel para escrever. Canetas, tenho o hábito de andar com algumas na mala. Sendo a caneta um objecto valioso, prestimoso e às vezes até prestigiante - se tiver boa apresentação - de nada vale, penso, se não se tiver o tão simples, tão humilde papel.
Quantas vezes tive de passar colada a um carro, com receio de passar no espaço inclinado para a ravina, único espaço deixado livre de carros. Lembrava-me que, se alguém caísse dali, poderia ter morte instântanea, ... ou pior, ficar inutil e sofrendo toda a vida.

Em Dezembro, no último Dezembro, já o inverno se fazia sentir, notei ao passar por debaixo do prédio, uma mini-barraquita feita de zinco, entre os vãos das colunas do prédio. Pensei: sou tão distraída, tão pouco observadora! Isto deve estar ali desde que a oficina de automóveis aqui está! E eu nem me apercebi! E a oficina já tinha desaparecido há uns tempitos. Tinha estado ali por uns largos anos.

No dia seguinte, vi umas almofadas grandes, de sofás, encostadas à parede. Almofadas desgastadas pelo tempo, como o homem que ali estava sentado.
Pensei com a minha ingenuidade : Não, o homem não pode viver ali, ao frio, sem qualquer conforto, sem qualquer pessoa com quem falar, sem contacto humano, sem família. Está ali à espera de alguém!
Depressa me desiludi! Encontrei o homem no dia seguinte, a mexer num contentor de lixo na transversal de uma rua próxima. O que andaria o homem a fazer no contentor do lixo?
- Provavelmente - respondeu-me baixinho a minha ingenuidade - o homenzinho, merecia este nome porque era baixote, um pouco barriguidinho - deitou lixo num saco e descuidadamente deixou cair o relógio. Talvez, quem sabe: Um anel. E a minha parte lógica, sem ingenuidade, começou a falar alto comigo:
- O homem anda à procura de restos: Restos de comida.
- Não, respondi também alto, em resposta à minha parte lógica. Não pode ser. O homem tem a barba mais ou menos cuidada. Está vestido e calçado embora com simplicidade. E tem uma cara normal.
- Então os pobres têm cara anormal? Não podem fazer a barba? Não têm necessidade da roupa e do calçado que são impostos pela sociedade? E então nesta época em que o frio está a começar...
- Pois. E a minha parte ingénua pediu desculpa à lógica. Obrigada por me completares. Que seria de mim se as duas fossem inimigas?
Quando cheguei a casa contei ao meu marido. Falei-lhe do homenzinho que... Ele acreditou de imediato que ele estivesse à procura de...comida.
- Mas comida no lixo? Está estragada, respondi-lhe! Quando se deita comida no lixo, ou está a mais na casa das pessoas - que pena o desperdício - ou está estragada. No contentor do lixo, que fica normalmente ao sol, vai aquecendo. A tampa do contentor, não deixa arejar. O que está certo: Se assim não fosse,  o que seria de nós com as moscas a irem ali dentro, regressarem e voltarem poisando em tudo que é sítio? E no nosso corpo também, já que também "é sítio"! 
Assim que cheguei à minha empresa, mandei de imediato um email a participar à entidade que, parecia-me, seria a indicada para tratar do assunto, sugerindo que o encaminhassem, ao email e ao homenzinho (chamemos-lhe assim, não sabemos o nome dele) para uma instituição apropriada.

TóCortez fotografia Olhares  Direitos de Autor 
Se tratou!!!... o homenzinho continuou lá até há ultima semana de Julho. A entidade não terá culpa, é que as entidades são compostas por pessoas humanas e desumanas. E no fim do mês paga a todas do mesmo modo, sem pôr na balança os bons ou maus actos. Nem o poderia fazer.
Passei por ali mais vezes. Tentei aproximar-me com o coração. Mas o homenzinho nunca foi muito cooperante. Olhava-me de olhos baixos. E só uma vez me lembro de ele me ter respondido: sim, está muito frio. Mas porque não usou o casacão azul marinho, aquela parka de meio corpo, que alguém lhe deixou lá quando ele não estava, e estava em muito bom estado? A camisola que usava, estava safada de velha. A parka ajudaria a enfrentar o frio. E se estava frio! Mas aquele agasalho, ali continuava a seu lado, dobrado em quatro partes, como que esperando mais para fazer a coleção de inverno. Porque o homenzinho parecia ser aptidao para colecionador. Ou teria ficado com o hábito depois de muitos anos de profissão como tal? Foi colecionando garrafões vazios que encontrava no lixo, uma ou outra almofada, cartões.
Há quem colecione selos, postais, caricas. São crianças de todas as categorias sociais: ricos e pobres. Depois de adultos deixam-se disso. Às vezes lá fica um bichinho e, com amor, continua o adulto a colecionar postais, selos, coisas de pouca valia, enquanto outros - os ricos - colecionam quadros de arte, relógios valiosos, jóias e brutos carros ou carros vintage. O meu homem - nome que um dia me saiu ao referi-lo ao meu marido e depois o nome pegou, como pegam os grandes chavões - foi iniciando novas colecções: caixas de plástico onde alguém lhe levava comida. Comida quentinha. Provavelmente algumas vezes feita de propósito para ele: um prato de bacalhau por exemplo. Quem sabe se alguém o teria feito, com amor e carinho, porque se a comida lhe sabia bem, também deveria saber bem ao homenzinho! As caixas de plástico eram de todas as medidas, de toda a forma, de todos os feitios. Com tampa, sem tampa. As que não tinham tampa, teria a comida sido entregue tapada com papel de alumínio? Acredito que sim. 
Acredito que, preocupada com aquele arsenal de caixinhas, caixas, caixonas, lhe tivesse dito: ponha dentro de um saquinho de plástico - que ele colecionava às centenas - e deixe ficar aqui de lado. Quando a pessoa lhe deixar comida - pois o homem não parecia ter telemovel e não seria possível combinarem o momento da entrega - essa pessoa leva o saco que tem algumas caixinhas, que servirão para trazer comida da pr
óxima vez. Além de olhar para um lado e para o outro, ou abanar muito ao de leve a cabeça como se tivesse compreendido, nunca o fez.
- E o cobertorzinho que alguém lhe ofereceu? Eu olhava, de soslaio, para a porta de zinco da tal casinhota, que raramente se encontrava entreaberta. Não só olhava de esguelha como apresadamente, não fosse o homem sentir que eu estava a invadir a sua privacidade.E a porta só estava entreaberta, raras vezes, e essas quando o meu homem ali estava sentado nas suas almofadas ou numa espécie de prateleira de madeira, onde se acumulava não só o peso do seu corpo, como as suas coleções. A prateleira tinha os lados assente em pedras, de certeza carregadas para ali por ele, com a sua habilidade de homem das cavernas que tem de aprender a sobreviver.
- Como é que o meu homem pode viver sem saber o que se passa no mundo, aquilo que tomamos conhecimento através da televisão, da rádio, dos jornais, das revistas, dos livros? Não se pode alimentar da informação que a sociedade passa de boca em boca! Fiquei mais descansada quando, ao sair mais tarde do escritório, nas tardes tornadas noites pelo dia ser tão curto, vi o meu homem num estabelecimento comercial, perto do seu domínio, a ver televisão, de pé, com sacos de plástico, vazios, na mão. Mas a minha preocupação continuou neste assunto, até que... adivinhem - o meu homem estava numa tarde solarenga, debaixo dum murito do jardim das galerias do prédio onde eu tinha o meu escritório, a desfolhar papeis, revistas, jornais. Uau! Senti-me feliz. Fui eufórica compartilhar com o meu pessoal. O meu homem sabe ler. E preocupa-se com o que o rodeia. Não fala, é certo, mas sabe falar, sabe ouvir, sabe andar, não parece tonto. É apenas uma pessoa infeliz. Talvez não tão infeliz por ser pobre, mas infeliz por não ter família que lhe dê amor. Decidi que era essa a razão por que ele estava desfasado da sociedade actual.
- Como é que o meu homem pode sobreviver se ficar doente?
-  Ele parece rijo, respondia-me o meu marido. A maneira simples como vive, sem stress, deve enrijá-lo.
Aceitei. Pouco poderia fazer além de aceitar. Ou poderia? Talvez. Mas a falta de conversa entre mim e o meu homem, que se negava a entabulá-la, evitou conversas, evitou que eu reclamasse mais da entidade oficial, também até porque, a esperança me dizia: as pessoas levam o seu tempo. E o tempo corria veloz, para eles e para mim. Não sei se o tempo também corria apressado para o meu homem...
Apesar de estarmos no distrito de Lisboa, onde o frio não é tão intenso como no Norte de Portugal, apesar de estarmos num lugar lindo e especial, com uma baía encantadora, não obstou a que neste inverno principalmente, as noites se tornassem gélidas. Meu marido dizia que era eu que estava a sentir uma parte do frio para que ( o meu homem como eu dizia, o homenzinho dizia o meu marido) não sentisse todo o frio na totalidade.
- Onde dormiria o meu homem? O espaço dentro da casinhota de zinco, não era mais largo do que um metro, isto na parte mais larga, e depois estreitava um pouco. E de comprimento, não teria mais de metro e meio. Ora o homem parecia ser mais alto do que um metro e meio. Para ali dormir teria de ser enroscado. Como dormem os cães. E os gatos. Os homens não têm de se enroscar tanto. Só às vezes e nunca por obrigação.
Desde o final do primeiro trimestre deste ano, deixei de precisar de passar por ali. A necessidade de férias era total. Tirei férias, faseadas em Abril, Maio e Junho. Uma semana em Abril e Maio e duas semanas em Junho. O calor impediu-me de ir logo, digo eu. Ou será que o meu amor pelo meu homem esfriou enquanto estive de férias? Esta é a verdade, não fui logo.
Ficou combinado de véspera com meu marido, que na tarde seguinte iriamos dar uma voltinha a pé, afinal, com o calor, tinhamos afastado esse hábito. Esse hábito? Hábito é rotina, e rotina nunca chegou a ser. Há sempre as desculpas: agora está frio, agora está calor. E mais uma escusa: Como sabes, dizia eu para meu marido, eu detesto vento.
Já era tempo de ir, eu estou a ficar gorda, horas e horas seguidas, de dia e de noite, a escrever no computador, ou a falar (menos do que desejaria) com alguns familiares e amigos no skype.
Disse para mim própria: então se tenho a possibilidade de ir passear, tenho de ter possibilidade de ir ver o meu homem. Não é só lembrar-me com preocupação, de vez em quando, mesmo nas férias. Como terá passado? Será que algum benfeitor o ajudou? Será que conseguiu tirar do contentor, alguma coisa que o ajudasse? Esta minha pergunta mental, repugnou-me, mas era sequência do que vi o meu homem fazer algumas vezes. Será que o seu dinheirito teria chegado para se alimentar durante este lapso de tempo? Suponho que tivesse uma magra pensão de 200 e tal €uros, porque cheguei a vê-lo, no fim de um qualquer mês, regressar com uma qualquer comprazita, num saco de um qualquer espaço comercial de vendas.
Eu queria ir sózinha. Meu marido só tinha ido comigo duas ou três vezes. Este era o meu homem, eu é que o tinha descoberto, eu.... eu gostaria de ser D. Isabel de Aragão. Meu marido seria D. Dinis? Não sei se gostaria, Não, prefiro o meu, o meu marido que não é rei. Também, e nisso tenho pena, não é poeta, como era D. Dinis. Nem mandou semear o pinhal de Leiria! (Quem sabe se a antever que uns séculos mais tarde a madeira do pinhal serviria para construir as naus das descobertas. Mas nem eu era a Raínha Santa nem ele o Rei.  Nem eu tinha géneros alimentícios (detesto o nome esmolas) que se transformavam em rosas nem meu marido era um Rei, (D. Dinis seria meio tirano?) que me perguntava (e eu da História nunca ouvi o som da sua voz) : O que levais no vosso manto Senhora?
E fui. Ainda era uma estirada entre a minha casa e o espaço ocupado pelo meu homem.
Tó Cortez fotografia Olhares - Direitos de Autor 
De longe vi que não se encontrava. Nem as suas coleções de garrafões, caixinhas e sacos de plástico. Aproximei-me num misto de emoções. Será que - até que enfim - a entidade, a sociedade, fosse quem fosse, teria arranjado uma nova morada para o meu homem? Será que ele teria agora refeições regulares? A tempo e horas? Teria a companhia necessária para uma vivência a que desde as cavernas o homem procurou? A casinhota estava com a porta escancarada. Lá dentro ainda as almofadas velhas de tecido estafado. Olhei em volta. Mais para diante. Na esquina, atrás de uns arbustos, ao lado do passeio da Avenida 25 de Abril, mal empilhados, jaziam os seus pertences, as suas coleções de caixinhas, de garrafões vazios, de cartões meio esfarrapados, de alguns frascos de vidro, algumas roupas cossadas, cobertores ou bocados deles, desgastados pelo tempo. Pareciam mudos à espera de um carro do lixo que passaria depois da meia noite, e ruidosamente os arrebatasse para serem revolvidos num torvelinho que os faria gemer de dor.
Ainda perguntei algumas vezes: Onde está o meu homem? Para onde levaram o meu homem? Mas era apenas a voz da minha imaginação.
A minha parte lógica tinha vindo ilógicamente perturbar-me. Nem a deixei falar. Gritei-lhe: Não, não pode ter morrido. Se não morreu com tanto frio, não morria agora com todo este calor! Mas arrependi-me e disse baixinho: Será que morreu? Será que o meu homem morreu?
Quem souber que me responda. Sim?

Celeste Cortez

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